quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A Iluminura, o Califa e o Cinema.



Ontem, eu e Glauber Nocrato, o músico dos meus últimos dois filmes, demos um passeio pela exposição Islã, no Centro cultural Banco do Brasil. Após frisos, pratarias e tapetes, demos de cara com a seção dedicada à caligrafia.

Belíssima a caligrafia islâmica, algo que a cultura oriental soube usar como arte e que para nós é apenas a funcionalidade das letras. Nosso olhar caiu de imediato sobre uma edição do Corão de séculos atrás, não essa da imagem acima, mas uma até mais bonita, totalmente feita à mão, de muito antes da invenção da tipografia. Imenso, o livro se encontrava aberto em um ponto com páginas douradas, e o cuidado com a elaboração deixava a gente a imaginar as outras folhas. Eu me perguntei quantos dias devem ter se passado para se fazer apenas aquela página. Um dia, dois, uma semana? E o livro todo? Meu amigo riu e disse que “o tempo alí, não era a questão. O cara que fez não estava preocupado com isso.”. Na verdade, naquela época, o califa mantinha sobre contrato inúmeros iluminadores e calígrafos que se mantinham na tarefa contínua da elaboração dos livros. Meio assalariados e meio escravos, o tempo de suas vidas na terra se resumia a fazer aquilo, então o tempo de se escrever uma página, ou um livro, acabava sendo irrisório.

Mais tarde, com a devida cervejinha, e discutindo sobre a “paciência”, que eu acredito ser a pior das qualidades, voltei ao Corão dourado que vimos antes. Comecei a imaginar a situação dos Califas. Imaginei um Califa que olha por sobre o ombro do calígrafo e pergunta: “Então camarada, quando fica pronto?” e o pobre iluminador só pode dizer: “Tenha paciência, ò Califa! Um dia terminarei.” e dez anos se passam, e então o Califa um dia abre o livro, folheia as páginas douradas, e diz: “Está Lindo!”. Vejam só! A paciência de dez anos recompensou o Califa com o prazer de um momento, e claro, com todos os outros momentos que voltasse a ter o livro às mãos. Eis a recompensa!

Depois imaginei outro Califa! Esse é diferente do primeiro. Olha também sobre o ombro do artista, mas ao invés de repetir a pergunta do anterior, vê o calígrafo desenhar sobre a folha dourada com cuidado e exclama “Está ficando lindo!”. Fazia amor com aquilo e após dez anos acompanhando o quão bonito ficava o livro, quando este estava terminado, abria e vivia em um único momento, os dez anos de beleza e amor que acompanhou na sua feitura.

A diferença entre os dois Califas, é que enquanto o primeiro teve a paciência de dez anos pela beleza do momento, o outro viveu em delícia os mesmos dez anos e depois, contemplando o livro, acabava por reviver os dez anos em um único momento.

Glauber acha que eu faço confusão semântica, confundo paciência com espera. Ele entende a “paciência”, como “paz ciência”, ou “ciência da paz” e assim a paciência seria plenamente aplicável ao caso do segundo Califa. Pode ser...

E onde entra o cinema nesse Califado todo? Assisti a uma entrevista do Arnaldo Jabor, que coincidentemente tem ascendência no povo daquela região, sobre o seu filme novo e ele reclamava que uma coisa que o tinha feito deixar de fazer cinema era o tempo de quatro anos para se fazer um filme. Ele disse que passou 24 anos sem fazer filmes. Tirando os quatro anos do pós EMBRAFILME, quando ninguém fez cinema, foram 20 anos de abnegação na recusa de fazê-los simplesmente por demorarem tanto tempo a serem feitos. 20 anos... Davam para ter sido feitos 5 filmes... e dizem que esse último é muito bom.

Livros perdidos no incêndio do palácio do Califa fazem falta. Ainda bem que calígrafos e Califas não pensavam sobre o tempo que se passava para se fazer um livro, ou então eram pacientes, seja ao estilo de nosso primeiro Califa, seja ao estilo do segundo. Tudo isso para dois cearenses olharem duas páginas por um vidro, e discutirem sobre a paciência, enquanto tomam cerveja.

Felizes somos nós.

Heraldo Cavalcanti

P.S.: Para entender melhor esse universo de Calígrafos e Califas, recomendo a leitura de “Meu Nome é Vermelho”, de Orhan Pamuk, prêmio Nobel de literatura e um de meus autores preferidos.

Um comentário:

  1. Show, Heraldo! Obrigado por dividir tal experiência, tão rica e diferente do que estamos acostumados.

    ResponderExcluir