sexta-feira, 3 de julho de 2009



Há alguns anos atrás eu tinha um sonho recorrente. Em uma cidade contemporânea e suja eu percorria as ruas entre prédios feios, puro concreto tipo caixa de sapato, então eu via um buraco em uma parede e algo me atraía. Eu atravessava e de repente estava em outra cidade, quer dizer, era a mesma cidade, só que a cidade de antes, a antiga cidade, construções antigas esquecidas, meio decadente pelo descuido e esquecimento, mas mesmo com isso, ainda linda. Uma cidade esquecida dentro de outra cidade que era a mesma cidade.

A base da idéia que originou o meu filme não foi esse sonho. Foi uma experiência olfativa que tive quando andava ao lado de um jardim e que me remeteu a minha infância, somada as reclamações de solidão de uma avó e a uma conversa que ouvi meu pai tendo com um operador de telemarketing. No entanto, a imagem do sonho voltou com força total após o final das filmagens, quando gravei na rua em frente à casa que foi a locação principal do curta. A casa de 1912 destoava de toda à rua, mas a sujeira e a fuligem misteriosamente a tinham tornado invisível. Era quase como no sonho, só que a diferença principal residia de apesar de tudo aquilo, a beleza se mantinha no interior da casa. Outro tempo onde uma senhora toca Bach ao piano, e a sua irmã ajeita os móveis antigos fora de lugar. Quem parar ao lado do estacionamento por volta das 16h. poderá ver uma delas à janela, e se filtrar os barulhos da rua, ouvirá o som do piano. As subtilidades belas de outro tempo escondidas atrás de uma parede encardida, que se torna um manto de invisibilidade.

Conto isso porque adquiri um novo costume depois dessa experiência: olhar pelas portas entreabertas das casas antigas. O que tenho visto tem me despertado mais e mais curiosidade. Muitas vezes é só um corredor escuro, mas às vezes é uma senhora que dorme o sono leve dos velhos em uma cadeira de balanço, uma ponta de jardim que parece exuberante em um centro urbano caótico. Dia desses vi um átrio... Seria uma casa de clérigos? Nesse meu passatempo tenho descoberto outras casas, invisíveis ao olhar passageiro, que despertam a imaginação e que com seus interiores acabam formando essa outra cidade.

Quantas cidades há em uma cidade?

Heraldo Cavalcanti.